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SONHOS EM IMAGENS...


Super

A exposição só começa a funcionar quando o sol se põe e a noite se inicia: os filmes não estão num cinema, protegidos da realidade pela arquitetura de uma sala escura e indevassável, imune ao ruído do mundo que corre lá fora. Ao contrário, aqui, na galeria, a luz do dia insiste em insinuar-se, o calor do verão se faz presente, a rua ao lado não esconde o fluxo de carros, caminhões e pedestres em ações regulares ou extraordinárias do dia-a-dia. Mas nada disso impede o funcionamento do trabalho de Lívia Flores, que se aproveita desta condição para deflagrar sua intervenção imagética no espaço, afirmar seu investimento na multiplicação, desvio e dinâmica da imagem em movimento.

"A exposição só começa a funcionar quando o sol se põe e a noite se inicia": as condições do local (a galeria como espaço de sono, entorpecimento, sonhos, trabalho incessante, descanso) estão em sincronia com as circunstâncias em que o projeto foi iniciado: um sonho, que Lívia anotou e transformou em um dos objetos expostos. Ali, em folhas de papel carbono perfuradas pelo impacto da máquina de escrever e dos gestos à mão da escrita, arranjadas entre duas lâminas de vidro que se apóiam diretamente sobre o chão (trata-se, pois, de um objeto), pode-se ler:

"rodoviária / rua do hotel sem passado / centro"




O sonho, já aqui exteriorizado, extraído, materializado, ainda assim cultiva o informe, substância e lugar fabricante de imagens. Estas poucas palavras indicam um mapeamento incipiente e instigante, mistura de espaço e tempo sem outro lugar que aquele da própria proposição, que entretanto não gira sobre si mesma; remete aos filmes: esta continuidade se dá graças ao fluxo das imagens, às passagens que estabelece com as projeções. Felizmente o sonho salvou-se de si mesmo, das armadilhas caprichosas da auto-remissão narcísica, estéril e paralisante. A instrumentalização do filme enquanto continuidade do sonho não é descoberta de Lívia, mas efeito (decisivo para a modernidade) que ainda mal compreendemos (mesmo já no século XXI) do encontro de ambas as invenções (da imagem em movimento e do sonho): o inconsciente parece mais próximo, mais perigoso, mais produtivo, mais fluido e menos misterioso (há quem diga: artificial), atravessado por imagem e linguagem. Entretanto, ainda perturbador, sobretudo quando é trabalhado (como aqui) na interface com a matéria-arte.

O ambiente proposto pela exposição multiplica os diversos efeitos pretendidos, lançando o visitante em um espaço cercado de imagens em movimento contínuo, distribuídas em várias alturas pela sala, de modo a produzir uma perda de orientação inicial. Se a lei da gravidade mantém nossos pés e as demais coisas pelo chão trata-se ainda de efeito residual, pois neste ambiente já há muito tudo funciona de outro modo, em reduzida linearidade. Sem lugar fixo e privilegiado, o olhar é obrigado a deslizar por entre as diversas projeções, de uma a outra, indo e voltando, antecipando-se e recuando: é mesmo agora que tudo acontece e o projeto deste trabalho quer que seja assim: continuidade entre-imagens, do mundo mudo do sonho à vertigem da sala e seus ruídos mecânicos: os recursos são filmes super 8 em loopings contínuos, projetores expostos e espalhados pelo chão, superfícies de reflexo, paredes.

Há filme mas não existe cinema no trabalho de Lívia Flores. A artista cerca-se de cuidados, para não deixar seu esforço ser tragado pelos truques da montagem e da narrativa, submersos em toneladas de clichês produzidos por um século que se encerra. A oportunidade que surge nesta instalação é fruir o filme sem alguns de seus vícios, oferecendo outra experiência da imagem - ainda que tenham sido utilizados película, câmera, projetor. Os caminhos que se abrem são de uma investigação do entorno, dos lugares por onde Lívia passa, da paisagem que a cerca: investigar é lançar certo tipo de perguntas, capturar as coisas de um modo particular, cuidadosamente ensaiado; enfatizar aspectos de sua dimensão sensorial; perceber uma presença ativa própria, acoplada ao aparelho de captura de imagens; redimensionar a situação vivida nos termos de uma arquitetura acessível à percepção do outro. É importante a visibilidade de todo o aparato de projeção, (projetor, filme com as pontas unidas em forma de anel, ganchos colocados em pontos das paredes e do teto, superfícies de reflexão das imagens) tanto para aniquilar a magia da exibição e situá-la materialmente, como produto do movimento articulado de máquinas e lâmpadas, quanto para acentuar o traço escultórico da instalação, em que toda uma série de objetos está ocupando o espaço da galeria, determinando os deslocamentos possíveis do visitante pela área de exposição.


Mas de que qualidade são aquelas imagens, em movimento? Em cada projeção encontramos sempre passagens: ora Lívia aciona a câmera de passagem (num carro ou avião) pela paisagem ou cena urbana, de modo a construir uma 'paisagem em passeio' que evidencia o jogo cinético verbivisual paisagem/passagem (e este movimento pode ser preciso, como quando calcula o efeito de inversão produzido pelo reflexo da água de um rio), ora o objeto filmado delineia-se com clareza (fogueira, lacraia, formigas), mas sempre em deslocamento, mexendo-se, querendo escapar ao olho da câmera, atenta. Neste projeto, Lívia acrescentou um dispositivo óptico às projeções, fazendo com que cada uma se multiplique através de reflexos, chegando às paredes ampliada e distorcida, depois de rebatida em lâminas de vidro. Na verdade, cada filme produz de duas a três projeções: uma que atravessa o vidro, outra que se detém em sua superfície e uma terceira que chega, ampliada, à parede branca. Imagens espacializadas, fragmentação do movimento, proposição de intervenção no espaço-tempo: trata-se de experimento em que é decisivo evidenciar a vivência da imagem (em sua produção, sobretudo), seu percurso corporalizado via sujeito. A cena elétrica construída na galeria é índice de que a operação é mesmo a de produção de intensidades - isto é, imagens que colam à pele, circulam e nos fazem outro. O que foi uma vez sonho (imagem psico-química) individual é agora motriz de alucinação coletiva, frente à qual só cabe a deriva: tomar estas imagens como alimento, processá-las em cada órgão do corpo e transformar-se.

O olhar que se propõe aqui já é claramente aquele do olho não natural, acelerado. Se todos os trabalhos apresentados na exposição exigem a presença de lâmpadas, luzes elétricas, para funcionar, isto é problema inerente à lógica da imagem posta em ação: mesmo uma bandeira, apoiada à parede, composta de duas fotografias impressas, é iluminada por uma pequena lanterna à pilha. Talvez, paradoxalmente, seja este o objeto, dentro do conjunto, que re-envia ao cinema (no sentido do espetáculo), pois frente a ele somos mais espectadores do que quando mergulhamos nas imagens super 8. Isto é, as duas imagens do objeto-bandeira são também ao mesmo tempo paisagísticas e domésticas, trazem à tona novamente um percurso de Lívia frente à cidade, a casa, os caminhos, uma relação com as coisas. Que isso seja reconhecidamente mediado por uma tecnologia da imagem (e aqui não importa hierarquizar o digital, o elétrico ou o manual como tecnicamente mais ou menos avançado, pois o que está em questão é mesmo um jogo de relações ou um campo) que perpassa o inconsciente e materializa-se na arquitetura é o que me parece o importante nœcleo de choque do trabalho. A oportunidade que se oferece, seduz e que não deve escapar é a de se deixar tomar por esse susto, ainda que isto signifique perceber que a distância entre o sonho (que pensávamos ser nosso) e o espaço social da imagem é cada vez mais reduzida - é importante que estas passagens sejam sensorializadas e que disso se produza o impacto de uma experiência.

Ricardo Basbaum, Rio de Janeiro 2001



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