Cildo MEIRELES .Zero Cruzeiro, 1974-78. Impressão sobre papel, 7 x 15,5 cm. Zero Dólar, 1974-78. Impressão sobre papel, 6,7 x 15 cm.
Zero cruzeiro. É o valor perturbador que Cildo Meireles introduz no sistema de arte. Há um dinheiro no interior da história da arte brasileira, surgido em tempos de monetarismo e de economês oficial, característicos do autoritarismo pós-64. É parte fundamental de uma teoria dos valores da arte, trânsito entre axiologia e mercado. O artista vive o paradoxo ético frente à teoria econômica. Cari Menger, o clássico do valor, diz em seus Princípios da Economia Política que o valor é mensurável, porque se pode exprimir o valor de uma mercadoria qualquer com outra mercadoria de igual valor. 1 No seu percurso pelo mundo das imagens do sonho americano (e de seus pesadelos e terrores), Andy Warhol estabelece a sua política pop. Compreendê-lo nas diferenças é até um caminho para o entendimento do dinheiro brasileiro de Waldemar Cordeiro, Cildo Meireles, Waltércio Caldas e Jac Leirner 2 como valor crítico.
Warhol manifestaria a convicção de que sua pintura emerge de um processo de produção econômica. "A razão pela qual estou pintando desta maneira é que quero ser uma máquina".3 Seu ateliê será denominado The Factory, com os significados da divisão social do trabalho, mecanização, produção em série etc. de uma fábrica. Essa imagem maquinal, impessoal, sem apagar a intenção do artista, traz-lhe um distanciamento da "manualidade", O artista não representa, mas produz. Essa vontade de ser máquina leva Warhol ao processo de reprodução serigráfica de imagens, em 1962.
Uma de suas primeiras imagens pré-datadas, produzidas na mecânica serigráfica, é a série Notas de Dólar. Warhol apresenta imagens de cédulas: Um Dólar, 192 Notas de Um Dólar ou Muitas Notas de Um Dólar, indicando um caráter acumulativo da imagem. É metáfora da própria necessidade permanente de acumulação do capitalismo. Nessa época, Warhol fará uma série, Mona Lisa (1963), incluindo uma obra sugestivamente denominada Trinta é Melhor que Uma, com seu claro sentido axiológico sobre a acumulação. Transformado em Midas, qualquer imagem em que tocasse poderia se transformar em valor (fabricado pela The Factory), Warhol faz os cifrões ("Doilar Signs", em 1981-82): a matéria pictória é diferencial do valor.
Toda a ironia de Warhol, alimentada na crença da superioridade do capitalismo sobre o comunismo, leva-o a tratar os retratos de Mao Tsé Tung e Lênin (1972 e 1982) como imagens do consumo de ma'ssas. Como prenúncio da desmontagem das economias comunistas, faz a série "Foice e Martelo" (1977), às vezes descruzados. Na abertura do Leste Europeu, surge a contrapartida de seus artistas: Evgeny Mitta (A Família Malevitch, 1989, incorpora uma banda de cifrões), Alexandre Yakhnin (Dólar Kapital e Sokov (Dólar e Martelo). Substituindo a foice pelo símbolo da moeda americana, Sokov coloca a questão da interpretação da nova ordem econômica mundial e a subjacente internacionalização do mercado de arte russa.
Em Warhol, o deslocamento contextual da imagem não significa o afastamento crítico, mas a construção de seu valor econômico (isto é, arte). O isolamento da nota de dólar na pintura não é a sua retirada de circulação, mas a agregação de valor. Warhol não é um crítico do capitalismo, mas um formulador de seus ícones, na observação perversa da sociedade americana. Essa é a sua práxis. Sua iconografia arquetípica é como a superfície da ideologia da classe média americana: ideologia da não existência de ideologia, a visão pragmática, a ausência de uma história crítica. Ouvindo suas próprias diferenças de identidade social de infância (econômica, religiosa e lingüística), como filho de um imigrante tcheco católico nas minas de carvão da Pensiivânia. Warhol critica Brecht, confundindo as instâncias do socialismo.4 Define a democracia pop: todos são iguais porque bebem (= consomem) a mesma Coca-Cola (o presidente, Liz Tayior ou você),5 sem atentar para as diferenças de classe e para a divisão social do trabalho no plano internacional. No fundo, o dólar de Warhol é o de Bretton Woods,6 moeda internacional para um sistema de trocas entre economias sob a regularização do FMI. Daí a pertinência do depoimento de Cari Andre: "Andy Warhol foi o vidro e o espelho perfeitos de sua época e certamente o artista que nós merecemos" .7 Os E.U.A. podem ser vistos através de um Warhol. Entre os mitos da sociedade americana, encobertos por suas imagens de coisas e gente, está o self-made man. Warhol não desmonta a trama, mas estende o véu da ideologia. Crê no mito, porque ele mesmo se vê como um self-made man através da arte. É pela pintura que obtém a ascensão social, o sucesso, o prestígio e a fortuna que o compensam dos traumas do que lhe faltava no berço: beleza, riqueza e os outros caminhos da fama.8 Para Kynaston McShine, Warhol quis ser sobretudo um artista famoso, como uma nova identidade, como autotransformação.
O Dólar brasileiro, objeto popcreto (1966) de Waldemar Cordeiro, é outro monumento à ironia, única saída do artista entre os seus dois PCs, referidos por Décio Pignatari: o Partido Concretista e o Partido Comunista.9 Sob o choque da Nova Figuração, desde 1963, e do pop do ano seguinte, Cordeiro, o mais dogmático dos concretistas brasileiros, vive o seu impasse diante do "fracasso de todas as utopias de fundamento tecnológico".10 Seu purismo - calcado no visibilismo de Fiedler via Gramsci - põe-se em cheque,
porque Cordeiro é a antena sensível. Busca um realismo que incorpore a linguagem da comunicação de massas e a experimentação semântica numa totalidade. Filhos de seu impasse, entre a razão e a ideologia, os popcretos (ou "objetos concretos semânticos") querem uma "arte que possa ser lida pelos próprios sinais da vida".11
O Dólar de Waldemar Cordeiro não é a imagem da cédula americana de Warhol, mas um cifrão, sinal universal para designar o dinheiro. ó cifrão é feito de lentejoulas, como moedas penduradas. Com seu brilho atraente e barato, seu lastro é a sua superfície. Não simula qualquer valor, apenas brilho. Waldemar Cordeiro provoca deliberadamente uma aversão fiduciária à moeda, apresentada por seus signos de descrédito. É sua "metáfora epistemológica".12 Indigno de confiança monetária, esse cifrão revela-se da ordem da economia do precário, tenso como LuxolLixo, de Augusto de Campos.
O Dólar é a esperança de Waldemar Cordeiro numa arte semântica, capaz de realizar a "aproximação entre todos os homens", um espaço de coesão, como a moeda. Porque Cordeiro, diferente de Warhol - o artista
como self-made man do capitalismo -, permanece fiei ao seu estatuto intelectual gramsciano e à sua utopia: "No mundo moderno, os meios de produção e de comunicação deveriam ser os mesmos para todos, em todos os lugares". 13 num mundo que se sabe desequilibrado entre desigualdades sociais e internacionais.
Maigrado tais diferenças éticas, Waldemar Cordeiro soube reconhecer a qualidade da Pop Art americana ("mais empírica e direta"), uma "arte terrena e terrestre como a Renascença" .14 Cordeiro não tem, no entanto, a ingenuidade ideológica de Warhol, de crer que o acesso geral à mesma Coca-Cola indique qualquer justiça maior entre os homens. A crise social brasileira, agravada pelo golpe de 64, não está ausente deste monetarismo às avessas de Cordeiro. A racionalidade econômica, no Brasil pós-64, cria a casta dos que falaram "em primeiro aumentar o bolo (... ) , somando e subtraindo algebricamente o supérfluo e o essencial, solertes em perpetrar os próprios privilégios" , como diz Celso Furtado.15 A materialidade carnavalesca do Dólar de Cordeiro, com o seu brilho fácil, borda a descrença no sistema desequilibrado de trocas em que se assenta o mundo. O cifrão de Waldemar Cordeiro pareceria, embora não designe, a moeda fraca (cruzeiro). Ele prefere significar a moeda forte, internacional, do centro regente da economia e da arte. Cordeiro não crê nas fronteiras de Bretton Woods.
A arte - não importando a sua materialidade, siickscreen de Warhol ou brilhareco de Cordeiro - é valor com lucro. Seu valor rege-se pela lei da oferta e da procura, inescapável aplicação da economia política de Carl Menger. O mercado de arte busca consolidar, no circuito, a sua hegemonia ideológica, isenta de recuperação, para seus propósitos, de todo o movimento das diversas instâncias do circuito de arte: artistas, críticos e historiadores, curadores e colecionadores, instituições, revistas e o público.16 Uma das formas, e das mais eficazes, é a História da Arte, um aval. Há uma circulação da arte e do seu conseqüente valor financeiro determinados pela História, nas suas formas de ser escrita e no seus agenciamentos. A História escrita caracteriza-se, nesse caso, como um instrumento de poder e tem se restringido aos grandes centros hegemônicos - e a seus artistas - no plano internacional e também na perspectiva do colonialismo interno.
Apesar das exceções e aberturas recentes, 17 é uma história que teima em recalcar determinadas manifestações de arte, não replicantes, dos países e regiões periféricos, Textos, catálogos, acervos museológicos e exposições acabam sendo mecanismos dos mais eficazes da reiteração das hegemonias instaladas, ao mesmo tempo que a manutenção da sombra sobre a produção das áreas periféricas muitas vezes são tratadas como mostras-guetos, como exercício de geografia etnocêntrica e diplomacia cultural. A história, com suas omissões, revigora, mesmo involuntariamente, o mercado da arte hegemônica (e vice-versa). O valor não é arbitrário, afirma Cari Menger, mas vem do conhecimento da disponibilidade do bem e do atendimento de nossas necessidades. Informação e criação da demanda, e
seu reverso omissivo, acabam sendo as funções econômicas dessa História da Arte. Um exemplo é a mega-exposição "qu'est-ce que Ia scuipture moderne?" (1986, Centro Pompidou, Paris). Visando um panorama universal do século, a mostra mal cita o movimento argentino MAD (de 1946, com seu pioneirismo, como o uso de néon e lâmpadas fluorescentes que antecede um Flavin minimalista),18 ou sequer menciona o neoconcretismo de Oiticica ou Clark. Quanto valemos como ausência?
Zero Dólar. Zero Cruzeiro. As obras de Cildo Meireles são cédulas verazes com seu fundo de segurança, cartelas, corandel, efígie e outros elementos gráficos da estampa monetária. A cédula Zero Dólar foi realizada com a participação de João Bosco Renaud, gravador e designer gráfico de cédulas monetárias para a Casa da Moeda do Brasil. Embora volante de um país, a moeda é curso do jogo da hegemonia sobre a territorialidade: "gera um espaço social homogêneo, onde todos possuem a mesma referência para avaliar seus créditos e suas dívidas", opina Lucien Giliard.19 Em seu dinheiro, ali onde bancos emissores ilustram com efígies dos heróis nacionais de suas economias, símbolos de riquezas e grandes feitos pátrios - tudo é alegoria como estratégia ideológica de uma pax autoritária, sufocante nas diferenças. Cildo Meireles, em seu Zero Cruzeiro, abre medalhões com um índio e um interno de hospital psiquiátrico. São duas situações existenciais e políticas marginalizadas, às quais a sociedade atribui nenhum valor. São confinamentos em territorialidades delimitadas, reserva indígena e instituição psiquiátrica. O dinheiro de Cildo Meireles - zero - tem, assim , um poder liberatório, para dar circulação à voz desses guetos. Poderia ser uma metáfora de Van Gogh. Cildo Meireles revela sua apreciação pelo holandês como um fundador dessa tribo de artistas da aflição e da paixão na arte. Em sua vida mal teria vendido no âmbito da família (ao irmão Theo), quase vivendo, enquanto produtor, como um artista de valor de troca zero, de zero florim. Paradoxo maior nessa economia do Zero Dólar, é que uma pintura de Van Gogh bate o recorde mundial em leilão, em 1990. É o Retrato de dr Gachet, que atendeu Van Gogh em seu leito de morte de suicida. Vendido por US$ 82.500.000 (-- notas de Zero Dólar de Cildo Meireles), essa pintura é o valor máximo jamais atribuído a uma mercadoria produzida por uma pessoa individualmente: é a arte do interno do sanatório de Saint-Rémy. Na recente corrida especulativa do mercado, o Retrato de Cosimo de Médice (1537-8), também marcou um salto de old-masters:
US$ 35.200.000. É do Pontormo, cuja loucura foi discretamente descrita por Vasari em seus Diários...
Arte é Money, mas também é, ainda, uma forma de conhecimento visual. Curioso o ano de 1990, se compararmos o preço de US$ 82,5 milhões da pintura de Van Gogh com o orçamento de US$ 70 milhões aplicados pelo governo brasileiro na "Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior" (CAPES). Parece que o senhor Saito está disposto a gastar mais em Van Gogh - um fundador da modernidade - do que o governo federal no aperfeiçoamento de professores universitários, agentes de necessária modernização da ciência e da tecnologia no país.
O siste ma de trocas é um espaço de desigualdades. Não há cálculo que racionalize a erosão do sistema financeiro sob a reflexão de Cildo Meireles sobre o valor. A sua Árvore do Dinheiro (1969, feita com notas de um cruzeiro e valendo dois mil cruzeiros) e o seu primeiro projeto a questionar diretamente a defasagem entre valor simbólico e valor real" .20 o signo como produto evoca a questão do valor de uso e do valor de troca historicamente mal-conhecida, segundo Jean-Joseph Graux no artigo "Marx et l'inscription du travar (in Tehéorie de l'enseble, Paris, Seuil, 1968, p.188). Este desconhecimento seria ocultação do valor produtivo do signo, como parece ser também a operação projetada na "economia política" de Cildo Meireles, em que a relação arte / trabalho emerge de forma inesperada, como uma ambivalente proximidade e distância. Suas obras - "irracionalidades financeiras - deslocam-se para além da assertiva clássica de Menger, onde os bens são econômicos não só não têm valor de troca - como se tem suposto até agora - como não têm valor algum; portanto, também não têm valor de uso". Como obra de arte mercantilizável, a família monetária de Cildo Meireles porta uma ironia corrosiva sobre os agentes do mercado. Cildo Meireles materializa a idéia de imensurável do valor simbólico. Seu dinheiro circula hoje com mais desenvoltura que A Apoteose do Dólar, de Salvador Dali, corroída pela especulação e pela hiperinflação surrealista. Zero Cruzeiro vale cinco ou dez cruzeiros, talvez cem dólares ou zero dólar, talvez haja troco em moedas de zero centavo ou, se for o caso, de zero cent.
Nesse câmbio, o cruzeiro não é o dólar trocado em miúdos. A moeda de Cildo Meireles busca o grau zero da economia da arte. Na obra fincanceira de Cildo Meireles há uma referência à tradição da arte: as cédulas remetem a uma linguagem bidimensional (o plano e a pintura), e as moedas, ao tridimensional (o volume e a escultura) .21 Como meio de troca, a moeda de papel moderna é representação do valor, e a "representação" é uma das questões cruciais da arte moderna.
Em Notas para Ambiente (1977), Waltércio Caldas estabelece uma ordem de cédulas fora de circulação que ironiza a arquitetura, ligando o teto à parede, acentuando a escala humana. Nesse período, o artista empreendeu uma guerra contra o hábito que leva os objetos à perda do valor dos símbolos e imagens. O artista trabalha numa área do inconsciente visual, como uma superfície. Para o artista há uma superfície algébrica em que se move a sociedade (estatísticas, meio circulante etc.). O dinheiro de Waltércio Caldas está fora do meio circulante, seja porque foi recolhido (Notas para Ambiente), seja porque é feito de jornal, em si outro sistema de circulação, como em Dinheiro para Treinamento (1977), visivelmente precário. Não há nenhuma intenção de verossimilhança, de figurar a imagem de uma cédula. Não representa a representação de valores. O olhar tem clareza de que isso não é dinheiro corrente. Tal transparência é que libera a razão para outra veracidade dessas cédulas: no entanto, isso é dinheiro, ainda que para treinamento como resíduo de sua dinâmica. Transubstanciando, a olho nu, o papel-jornal, Waltércio Caldas ironiza a capacidade do artista de transformar a "aura" das coisas.
O Dinheiro para Treinamento requer a compreensão preliminar do sistema de linguagem de Waltércio Caldas, com referências possíveis a Ludwin Wittgenstein. Parafraseando o filósofo austríaco, para Caldas, a arte é uma linguagem em "investigação filosófica", uma capacidade de conhecimento visual em processo. Ao denominar uma exposição A Natureza dos Jogos (MASP, 1979), torna-se explícito o "jogo de linguagem visual" como descoberta poética, do qual o Dinheiro para Treinamento é exemplar.
É preciso decompor o nome (não o título da obra), num encadeamento de raciocínio. Enquanto nos ativermos ao denominar o objeto como "dinheiro", estaremos ainda na "preparação para a descrição". O denominador não é ainda nenhum lance no jogo de linguagem" . 22 A denominação "dinheiro" define que isto, não pertencendo ao meio circulante, é simulação, como jogo de linguagem visual (e não simulação financeira especulativa). A teoria de Waltércio Caldas deve ser enunciada: "o valor é a simetria entre os valores". Está ainda e já não está no campo financeiro. O dinheiro, como reserva de valor, tem as funções clássicas de transação, segurança ou especulação e, agora, de treinamento. Essa nova circulação funcional de "treinamento" remete a Wittgwinstein: "o ensino da linguagem não é aqui nenhuma explicação, mas sim treinamento."
Waltércio Caldas reduz sua obra ao jogo da linguagem visual, distanciando-se da textualidade. Há muitos artistas que se referem à filosofia de Wittgeinstein; enquanto Caldas pensa através das relações visuais, outros artistas, como Kosuth, recorrem ainda tautologicamente à palavra. O jogo da linguagem, como disse Wittgeinstein, é essencial à própria linguagem. Waltérico Caldas, em tempo da "desmaterialização da obra de arte" .23 exacerba o sentido contemporãneo da moeda desmaterializada. Nas suas "Investigações Filosóficas", Wittgeinstein foi peremptórios "Como disse: não pense, veja", ao que Waltércio parece aduzir "mas não creia", pois "não somos obrigados a acreditar inteiramente no que vemos, não é verdade? Há uma dúvida que pertence à clareza" .24 Seu dinheiro certamente não quer replicar o simulacro de uma moeda fiduciária. Caberia aqui reintroduzir Wittgeinstein: "A imagem representa o que representa, independentemente de sua verdade ou falsidade, por meio da sua forma de representação pictorial" , 25 a qual está sobre o crivo crítico de Caldas.
Ao escolher cédulas de cem cruzeiros e denominar sua obra como Os Cem, Jac Leirner refere-se ao decimal e à origem da palavra "dinheiro, isto é, denariu em latim, que contém o número dez (1 O x 1 O = 1 00). A obra de Jac Leirner, estruturas como dinheiro brasileiro, pode ser tratada como "anacronismo imperfeito". No capitalismo avançado, a cédula monetária é um anacronismo: - cartões bancários substituem cheques (que representam depósitos de cédulas, que correspondem a valores), mas já não mais representam depósitos de cédulas, mas a informação eletrônica em "database" (para usar a linguagem da informática), que representam os depósitos. A palavra "dinheiro" refere-se ao novo sistema bancário, à configuração de óxidos numa fita armazenada no departamento de computação de um banco .26, Marcel Duchamp, a quem Thierry de Duve chamou de phynancier da vida moderna 27 paga o seu dentista em 1919 com um desenho de um cheque de US$ 115 (o "Cheque Tzanck"), como um escambo mediado por uma imagem de representação de um valor. Evidentemente a economia do escambo, um anacrônico sistema, é objeto de ironia de Duchamp na solução de seus problemas práticos cotidianos.
Corresponder, representar e substituir são o caminho do simulacro dos valores, dos simulacros dos simulacros. A obra de Jac Leirner, na era do dinheiro eletrônico, "das palavras sem coisas", 28 é um anacronismo imperfeito, porque toca no que ainda é a realidade brasileira: inscrições pessoais e silenciosas, agressivas e esperançosas, afirmações de existência do anônimo nas cédulas em circulação, como verdadeiras "inscrições em circuitos antropológicos" espontâneos. São, pois, próximas de Cildo Meireles, da indagação carimbada do meio circulante: "Quem matou Herzog?" Nesse contato com o concreto e o afetivo está a imperfeição do anacronismo, a pertinência e a atualidade da obra de Leirner. Ao acumular 0° dinheiro, as cédulas ultrapassam a sua bidimensionalidade e formam volume, como um círculo / disco, que remete à moeda referida ao seu valor.
O sistema do dinheiro informatizado, confrontado em Os Cem com o nojo inicial de Guy Brett frente à obra de Jac Leirner, "(... ) era feito de cédulas de papel-moeda, milhares, talvez dezenas de milhares, enfileiradas numa cadeia. Sua cor indescritível, seu jeito manuseado, sua imundície. O objeto tornou-se imensamente pesado, sem vida, numa parábola de inércia (…)".29 São cédulas moribundas, à beira da coleta pelo Banco Central do Brasil, após uma intensa circulação hiperinflacionária, como um tempo de vertigens, sem a racionalidade do taylorismo. Esse dinheiro sujo do uso pelo povo, portador do vírus da pobreza, já quase Zero Cruzeiro, estabelece, como todo dinheiro, relação psicológica com feses. A relação dinheiro / erotismo anal foi estudada por Freud: nas antigas civilizações, nos mitos, nos contos de fadas e nas superstições, no pensamento inconsciente, nos sonhos e neuroses - o dinheiro é intimamente relacionado com a sujeira ( )" , e conclui, "( ) é possível que o contraste existente entre a substância mais preciosa que o homem conhece e a mais desprezível, que ele rejeita como material inútil ('refugo'), tenha levado a essa identificação específica do ouro com as fezes" .30 Uma questão que resta é se o dinheiro informatizado opera uma assepsia e altera essa relação erótica característica da sexualidade infantil.
Waldemar Cordeiro e o vulgar; Cildo Meireles e o não valor; Waltércio Caldas e o banal; Jac Leirner e o imundo não são "moedeiros falsos"- por mais sedutora que seja essa figura de estilo. Não há valor falso, não há falso peso nem falso metal nesse circuito de clareza. Não se trata de uma ingenuidade frente ao mercado, mas a genuinidade de suas questões frente à história concreta dos homens. Ah! Money is arte.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Esse artigo foi originalmente publicado em Galeria Revista de Arte, no.24, março/abril de 1991, pp. 60.67. Esta versão foi ampliada em 1995 para incluir novas referências às obras de Cildo Meireles e Waltércio Caldas.
1 - Tradução de Luiz João Baraúna, Nova Cultura, 1986.
2 - Não se pretende esgotar uma teoria dos valores da arte brasileira, que incluiria outras questões e artistas, além de Notas para Ambiente (1 977), de Waltércio Caldas, sobretudo Árvore do Dinheiro (1 969), Inserções em Circuitos Ideológicos - Projeto Cédula (1 970), Missão Missões (1987) e Olvido (1989), de Cildo Meireles, ou ainda, por exemplo, as gravuras de Rubem Grilo, que discutem as relações entre trabalho e capital.
3 - Declaração de 1963, in Andy Warhol, a retrospective, Museu de Arte Moderna de Nova lorque, 1988.
4 - Ibidem, vide nota 8.
5 - Em 1975, ibidem.
6 - A Carta de Bretton Woods, E.U.A.(1944), disciplina as relações econômicas internacionais - (dólar como moeda internacional, regras de câmbio e medidas de estabilização do comércio internacional, regulação macroeconômica interna o centrado nos respectivos mercados nacionais).
7 - In nota 3.
8 - Essa é a análise de Kynaston McShire, curador da retrospectiva de Warhol, in Introdução, op. cit., nota 3.
9 - "Um Radical Inseguro", in Waldemar Cordeiro, uma Aventura da Razão, MAC-USP, 1985.
10 - "Realismo: Musa da Vingança e da Tristeza"(1965), ibidem.
11 - "Realismo ao Nível da Cultura de Massa"(1965), ibidem.
12 - "Novas Tendências"(1963), ibidem, referindo-se a Umberto Eco.
13 - Nota 10.
14 - Ibidem
15 - Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise, Paz e Terra, 21 edição, 1984.
16 - Ronaldo Brito, "Análise do Circuito", Malasartes, n.1, 1975,
17 - Vide Aracy Amaral, "Cêntrico e Ex-Cêntricos: Que Centro? Onde Está o Centro?", in Galeria Revista de Arte, n.23, 1990,
18 - Vide "qu'est-ce que Ia sculpture moderne?", Centre Georges Pompidou, 1985, p,106; Gyuia Kosice, Arte Madi, Buenos Aires, 1982.
19 - "Banqueiro e Falsificadores", Correio da UNESCO, ano 19, n.3, 1990.
20 - "Cildo Meireles", Coleção ABC, Funarte, 1981.
21 - Ibidem.
22 - Investigações Filosóficas, tradução de José Carios Bruni, Abril Cultural, 1975. As citações são parágrafos desta obra.
23 - Lucy Lippard, Changing Essays in Art Criticism, Dutton, 1971.
24 - Manual de Ciência Popular, Funarte, 1982.
25 - Tratado Lógico Filosófico, (7/22), (1981) tradução de M. S, Lourenço, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
26 - Mark Poster, "Woods without Thinges: The Mode of lnformation", October, n.53, 1990.
27 - "Marcel Duchamp, or the Phynancier of Modern Life", October, n.52,1990.
28 - Op.Cit , nota 26 supra.
29 - "Jac Leirner" in Artistas Brasileiros na 201 Bienal Internacional de São Paulo Bienal de São Paulo, 1989,
30 - "Caráter e Erotismo Anal"(1908), apudjeremias Ferraz Lima, "Dinheiro - Uma Questão Além-Econômica", Jornal do Brasil, 29 de Janeiro de 1989.
Fonte da imagem: www.proec.ufpr.br/cultura/musa/ruptura.htm
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