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O medo: uma análise de Jean Delumeau

Jean Delumeau, autor de “O medo no Ocidente”, é um dos mais importantes historiadores em atividade hoje. Professor do Collège de France, Delumeau afirma que a civilização só cresceu quando superou seus medos. Hoje, disse, o medo americano do terrorismo torna-se um perigo para o planeta, na medida em que não leva em conta a análise objetiva dos problemas que a realidade pós-11 de Setembro levantou. Muitos de seus livros foram publicados no Brasil, como “O pecado e o medo”, obra em dois volumes editada pela Edusc; “O que sobrou do paraíso” e “Mil anos de felicidade — Uma história do paraíso”, ambos editados pela Companhia das Letras, e “De religiões e homens” (Loyola).

A retórica simplista dos EUA sobre o medo reedita manipulações do mesmo tipo em outras épocas? Deve-se temer o grande medo americano?

JEAN DELUMEAU: O medo faz parte da condição humana. Todos os medos levam ao medo da morte. E estamos todos submetidos à morte. Mas os medos mudam no tempo e no espaço em função dos perigos que se apresentam à Humanidade. Não podemos raciocinar sobre o medo sem levar em conta a necessidade de segurança, fundamental ao ser vivo. Tratando-se do perigo terrorista que faz tremer os EUA e outros países desde o 11 de Setembro, é impossível considerá-lo imaginário. Ele existe, mas pode virar meio de manipulação como foram no passado outras ameaças. Quando tais apreensões engendram a mentalidade da “cidade sitiada”, elas derivam para procedimentos inquisitoriais ou guerras preventivas. O medo, lúcido no início, torna-se um perigo. Impede identificar as causas de uma situação de fato inquietante que não tratamos com os verdadeiros remédios. Quanto à situação do Ocidente face ao perigo islâmico, a guerra do Iraque foi uma resposta não apropriada que agravou a situação, por não levar em conta uma análise objetiva dos problemas. O medo americano do terrorismo torna-se um perigo para todo o planeta.

Compreender o poder é exercício de compreensão dos medos que ele manipula, como o medo do desemprego?

DELUMEAU: Todas as civilizações, incluindo a nossa, desenvolveram-se fazendo recuar o medo e, portanto, com vitórias sobre o medo. Os progressos técnicos permitiram combater as doenças, aumentar a produção agrícola, melhorar as condições de vida. Os progressos do direito reforçaram nossas liberdades individuais e nossa proteção pessoal. Os tratados internacionais fizeram desaparecer a guerra entre países como França e Alemanha. Governar consiste em prever perigos que provocam medos, como o desemprego.

O medo é diferente no Oriente?

DELUMEAU: Os ocidentais são mais individualistas e menos fatalistas que os não-ocidentais. Mais sujeitos a medos ou mais frágeis diante deles. Somos mais apegados aos bens terrestres que a maioria dos não-ocidentais.

O senhor fala de “derrapagens” ao extremismo. Estamos vendo isso? Fundamentalismo é reação ao medo?

DELUMEAU: Todo fundamentalismo é reação de medo: apegamo-nos a uma doutrina simplista como se fosse uma bóia. Dá-nos segurança e responde a uma necessidade maior do homem. No fundamentalismo islâmico identificamos o medo de o Islã se desintegrar sob a força, mesmo não-violenta, do Ocidente. Formas de vida condenadas pelo Alcorão, a leitura crítica deste, a separação entre religião e política são percebidas como uma ameaça à identidade muçulmana, mais concebida e vivida de maneira coletiva que de modo pessoal. O fundamentalismo opõe ao mundo moderno a barreira de um texto tido como sagrado, intangível e além de qualquer discussão. O fundamentalismo conduz a “derrapagens” mais extremas. Nenhuma outra verdade é aceita fora do que se afirma pela autoridade.

É o risco de haver, portanto, uma derrapagem ao terror...

DELUMEAU: É uma realidade, já observada antes. No século XVI, na Europa, o medo da heresia levou à criação de legislações de exceção contra os protestantes nos países católicos e contra os católicos nos países protestantes. Na França de 1793, a mentalidade da cidade sitiada desembocou na Convenção e no terror. Todo sistema totalitário tem vocação terrorista.

O que dizer do homem-bomba, que não teme morrer?

DELUMEAU: Ele supera mais facilmente o medo devido à força de sua convicção e da crença numa recompensa no além, prometida a mártires. A irrupção desses kamikazes transtornou a concepção de guerra que se queria fundada em tecnologias mais sofisticadas.

O senhor diz que o sentimento de insegurança é muitas vezes maior que a insegurança real...

DELUMEAU: Isso nos faz constatar que os ocidentais hoje são menos resignados e fatalistas que seus ancestrais e menos que outros habitantes do mundo. No Ocidente, nos séculos XVI e XVII, a insegurança cotidiana era grande.

As religiões se multiplicam. O medo cristão faz parte do passado?

DELUMEAU: Apesar do quase desaparecimento da “pastoral do medo” — não se convertem mais as massas agitando o espantalho do inferno — assistimos à renovação das manifestações religiosas. É a prova de que a pastoral traumatizante não era necessária para ganhar as almas do cristianismo. O medo de Deus perdeu terreno, mas a necessidade de se dirigir à bondade protetora de Deus permanece e mesmo cresce. Por quê? Porque compreendemos melhor que há 50 anos que os progressos técnicos não levarão à salvação: nem aqui, nem no além. Pedir a ajuda divina é tomar consciência de suas fraquezas e insuficiências. Não existe sentimento religioso sem esta necessária humilhação.

Em que momento da História o homem sentiu mais medo?

DELUMEAU: O medo culminou no século XX, com massacres em guerras, genocídios, ditaduras de direita e esquerda. Que possamos não continuar nesse caminho no século que começa!

Fonte: http://www.usc.br/Edusc/noticias/14_08_04_pecadomedo_oglobo.htm

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