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A perspectiva da cultura visual em debate


A Cultura Visual no Ensino de Arte Contemporâneo: singularidades no trabalho com as imagens
Erinaldo Alves do Nascimento

Originalmente publicado na edição nº42, julho de 2006, do Boletim Arte na Escola

Em minha tese de doutorado (NASCIMENTO, 2005)1 , analisei como a produção visual e escrita fixam o que deve ser dito, visto e feito em termos de representação de infância, de ensino e de bom sujeito docente na vigência das denominações Artes e Ofícios; Ensino do Desenho; Educação pela Arte; Trabalhos Manuais/Artes
Aplicadas; Artes Industriais; Educação Artística; Arte-educação e Arte(s). Mais do que rótulos, a pesquisa comprova que as denominações e as respectivas produções escritas e visuais estão impregnadas de visões de mundo, de concepções de ensino e de sujeitos docentes e discentes a serem constituídos e “formados”. As denominações são referenciais de construção de visões e versões que fixam a
maneira de interpretar a nós mesmos e o mundo que nos cerca. Constatei ainda que a inserção da denominação Arte na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394, de 1996, no seu art. 26, § 2º – demarca uma mudança efetiva, com significativas rupturas e algumas continuidades, na maneira de conceber e ensinar
as Artes Visuais na contemporaneidade. Mudanças que começaram a ser gestadas a partir da década de 1980, quando vigorava o termo Arte-educação em contraposição à Educação Artística.

Após examinar os principais textos da área, tornou-se possível afirmar, tentando identificar os direcionamentos sugeridos para o ensino das Artes Visuais na contemporaneidade, que suas principais características são: a) buscar, disponibilizar e familiarizar imagens de diferentes fontes e matrizes culturais; b) promover visitações a acervos, patrimônios diversos e eventos culturais; c) ampliar a compreensão visual em relação ao cotidiano próximo e distante; d) atuar como
mediador de saberes artísticos, estéticos e imagéticos valorizados pela cultura tradicional, saberes que foram silenciados e saberes que podem ser problematizados para questionar preconceitos e estereótipos; e) amenizar os obstáculos que atravancam o acesso e a familiarização cultural; f) analisar as imagens para pôr dúvidas nas certezas, herdadas do passado, e realçar a permanente necessidade de mudanças voltadas para novas conquistas no presente.

Uma dedução possível, após identificar tais características, é que estamos vivendo uma época de intensa proliferação do visual na qual se desenvolve, paulatina e continuamente, um processo de rechaçamento da “identidade como eu” e uma valorização da “identidade como nós”. Considero que o homo clausus, cunhado por Norbert Elias como uma invenção da modernidade, esteja, aos poucos, sendo questionado, e é provável, caso essas propostas venham a ser efetivadas, que, no
lugar de um sujeito individualista, desponte um outro sujeito, mais aberto para, continuamente, questionar as interpretações sobre si, estranhando as noções familiares e os julgamentos sobre o outro, tentando tornar familiar o que parece ser estranho.

Em razão das condições de possibilidades mencionadas, que podem ser associadas a muitas outras, começa a repercutir, cada vez mais, as contribuições da cultura visual. No Congresso Internacional do INSEA (International Society for Education Trough Art), realizado em Viseu, Portugal, de 01 a 05 de maio de 2006, como registra o Boletim Arte na Escola, n. 41, a Cultura Visual foi o centro dos debates.

Por ser um campo de estudo e ensino ou, como prefiro chamar, uma perspectiva educacional em Artes Visuais ainda emergente – e considerando que não se preocupa em estabelecer fronteiras disciplinares e metodológicas – a cultura visualvem sendo alvo de várias interpretações, algumas delas contraditórias. Há, ainda,
muitas dúvidas sobre as distinções entre a cultura visual e outros referenciais de análise de imagens. O panorama fica mais complexo quando se sabe que há várias maneiras de interpretar a cultura visual. Faz-se necessário compreender que uma coisa é enxergar as imagens pertencendo à cultura visual de diferentes momentos históricos;
outra é trabalhar na educação formal e não-formal empregando tal perspectiva.

Alimento a suspeita que a cultura visual – sobretudo aquela que questiona as visualidades (o modo como vemos) e as imagens como portadoras de significados ou “suportes de verdades” – tem seu lastro em alguns dos princípios difundidos por Foucault, cujas contribuições integram um movimento, no qual situo, entre outros,Deleuze, Derrida, Norbert Elias, Basil Bernstein. Tais autores preocupam-se com o
conjunto de discursos efetivamente pronunciados em diferentes épocas,
modalidades de gêneros e suportes textuais. A atenção está voltada para o modo como o discurso, em suas diferentes materializações, afeta nossa maneira de pensar, ver, dizer e fazer no presente.

A cultura visual, como o termo sugere, entende que as interpretações visuais têm uma cultura, as quais afetam tanto o processo de produção como o de recepção. As imagens são construídas a partir de um repertório cultural, forjado no passado, e que, no presente, fixam e disseminam modos de compreender historicamente construídos.

A seguir, alguns dos princípios extraídos da articulação entre a cultura visual e aperspectiva foucaultiana, com a finalidade de realçar as singularidades no modo de trabalhar com as imagens:

1 - O foco não é a biografia ou o sujeito como gênio – Foucault refuta o culto ao gênio e à personalidade do autor como origem autônoma e transcendental de um discurso. Ele compreende que os sujeitos são específicos e modelados por regras e convenções construídas historicamente. A cultura visual, seguindo tal perspectiva, não se centra nos(as) artistas ou em outros(as) profissionais produtores de imagens. A biografia só interessa quando ajuda a compreender as mudanças processadas na produção visual. A atenção se volta para
a produção visual em geral e como fixam e disseminam modos de ver, pensar, fazer e dizer. Se para Foucault o tema central é o discurso e a produção de sujeitos, pode-se afirmar que o foco principal da cultura visual é a visualidade, comumente entendida como interpretações visuais construídas historicamente pelos sujeitos em diferentes épocas. Trata-se dos regimes de enunciação visual ou os modos como
passamos a ver de determinada(s) maneira(s) e não de outra(s);

2 - Não hierarquiza a produção visual – a produção visual, quer seja a consagrada e encontrada em galerias e museus, ou a mais corriqueira, detectável em cartazes, revistas, jornais, outdoors, roupas, objetos, decorações, projetos arquitetônicos e sites, sofrem os efeitos do discurso vigente em cada época. A cultura visual não faz hierarquizações entre as chamadas “obras de arte” e outras
modalidades de produção visual. O interesse de quem trabalha com cultura visual está em como as imagens, independente de ser artística ou não, produzem e fixam modos historicamente construídos de ver, pensar, fazer e dizer. Em decorrência, o trabalho com as imagens na cultura visual é essencialmente comparativo, pois imagens, de diferentes épocas e contextos culturais, ajudam a demonstrar como
determinadas representações persistem no presente;

3 - Não recorre ao passado para fazer exibicionismos – a investigação do passado é útil para conhecer desde quando se passou a pensar, ver, fazer e dizer de um determinado modo e não de outro. Não pretende, como alude a metáfora de Nietzsche, que nos tornemos caranguejos: “olhando para trás e acabando por acreditar para trás”. É possível afirmar, transpondo o mesmo qualificativo atribuído
às pesquisas de Foucault, que a cultura visual recorre ao passado para fazer uma “história do presente”. Ela desconfia do passado e o usa para questionar o presente de modo a enxergar novas veredas em relação ao futuro imediato;

4 - Não separa teoria e prática – para Foucault, a prática não é entendida como uma aplicação da teoria, como uma conseqüência da teoria como campos estanques e compartimentados. Teoria e prática podem ser vistas como “as faces” de uma mesma moeda. A cultura visual, por conseguinte, também não separa teoria e prática por entender que o saber enseja um fazer e que o fazer desvela um saber;

5 - Não é essencialista e formalista – a cultura visual não se contenta com a análise da configuração dos elementos visuais como se tivessem verdades a serem extraídas ou identificadas. Não se satisfaz com descrições psicológicas ou gestálticas sobre o que se vê. O foco da cultura visual é a interpretação das interpretações. A cultura visual não procura extrair interpretações desconectadas de um sentido, mas
problematizar como tais interpretações tornaram-se e são capazes de serem depreendidas;

6 - Não é evolutiva e linear – embora a diferenciação entre passado e presente esteja presente, a cultura visual questiona o sistema de interpretação escatológica,milenar e idealista, cuja noção de continuidade, evolução e progresso busca desconstruir;

7 - Não comunga com qualquer concepção de educação e de
currículo – como a persistência do passado torna difícil pensar uma escola diferente, a cultura visual também pretende ser uma tentativa de reorganização do espaço, do tempo, da relação entre docentes e alunos e dos saberes a serem ensinados. Não entende o currículo como uma “grade curricular”, mas como qualquer lugar ou oportunidade na qual se constitui ou se transforma a experiência de si. O brincar no recreio, participar de assembléias, de festivais, assistir a filmes,
fazer visitas, ver imagens, tudo é visto como elementos integrantes do currículo;

8 - Não é condizente com qualquer procedimento educacional – ao usar o diálogo como elemento de criação e de questionamento, a cultura visual recorre, dentre outros procedimentos possíveis, aos projetos de trabalhos. São modos flexíveis e cooperativos de ensinar e aprender, cuja finalidade é questionar visões rígidas e inflexíveis da realidade;

9 - Não contradiz outros referenciais do ensino de Arte “pósmoderno” – a análise de imagens é o ponto de continuidade entre a abordagem triangular, o multiculturalismo e a cultura visual, que considero as principais propostas do chamado “ensino de arte pós-moderno” veiculados no Brasil. Não as
vejo como contraditórias, mas perspectivas diferentes de análises de imagens e concebidas para serem abertas e flexíveis.

Para enfatizar como a cultura visual concebe a atuação docente, sirvo-me do trabalho intitulado Dominando, do artista Carlos Sena, natural de Goiânia (GO), cujo trabalho foi exposto na II Bienal do Desenho, no X Festival Nacional de Arte (FENART), realizado na cidade de João Pessoa, em novembro de 2004.

O título, além de ser uma derivação do nome do jogo “dominó”, pode aludir, também, ao domínio dos conhecimentos das mudanças históricas ocorridas no processode ensino e execução do desenho e a competência para transformá-lo no que, no passado, foi extremamente normatizado em uma atividade que pode, no presente, tomar outras veredas, inclusive a da ludicidade. Parece remeter à necessidade, cada
vez mais enaltecida, de se “dominar” constantemente o ontem e o hoje, de distinguir que é do passado e o que deve, justamente porque interfere e faz o presente ser de uma determinada maneira, impedindo avanços, ficar no passado.

Carlos Sena realizou intervenções em várias fichas, que parecem ter sido extraídas de livros didáticos de ensino de desenho ou de educação artística, amplamente disseminados entre as décadas de 1970 e 1980. Sobre essas fichas didáticas, ilustradas com vários exercícios de desenho geométrico, o artista desenhou e pintou pontos e linhas associadas às peças de um dominó. Olhando-as isoladamente são
interferências do abstracionismo geométrico sobre os mais convencionais exercícios de figuração geométrica. Cada intervenção, transformada em peça de dominó, foi exposta uma ao lado da outra, assim como se joga.

Como sugere a arte de Carlos Sena, conhecer o percurso histórico das mutações discursivas e visuais e a persistência de suposições do passado no presente é muito importante para problematizar os modos de ver, dizer, agir e fazer. Atuando desta maneira, pode-se contribuir para fomentar uma educação capaz de formar sujeitos
desconfiados, menos obedientes e mais questionadores e criativos. Sujeitos que sejam capazes de serem autores(as) ou criadores de si, de serem, como queria Nietzsche, únicos e “irrepetíveis”, com capacidade e disposição para compreender muito bem o que foi feito no passado e o que ainda precisar ser feito para mudar ou preservar no presente. Eis, portanto, a principal tarefa da atuação docente na cultura visual.

Erinaldo Alves do Nascimento é Doutor em Artes (ECA-USP); Mestre em biblioteconomia (UFPB) e Graduado em Educação Artística (UFRN). Professor do Departamento de Artes Visuais (UFPB.
E-mail: katiery@terra.com.br. Perfil no orkult Erinaldo Alves - http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=8429267945638812530 - Comunidadade no Orkult "Ensinando Artes Visuais - http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=33703426

(1)NASCIMENTO, Erinaldo Alves do. Mudanças nos nomes da arte na educação: qual infância? que ensino? quem é o bom sujeito docente? São Paulo, 2005, Tese (Doutorado em Artes),
Universidade de São Paulo. Orientação: profa. Dra. Ana Mae Barbosa. No intercâmbio com Barcelona, na Espanha, entre junho a dezembro de 2003, contou-se com a orientação do prof. Dr. Fernando Hernández.
Imagem extraída de http://www.humanflowerproject.com/index.php/weblog/2005/12/

Comentários

Olá, Erinaldo! Parabéns pelo blog inteligente e bonito!Foi bom ficar sabendo da sua tese. Isso é fazer bom uso dessa ferramenta chamada internet.Também criei um, então somos parceiros nessa iniciativa... Dê uma olhada: http://jornaldeartes.blogspot.com/
Um abraço.
Nivaldete Ferreira -Profa. Dra. no Departamento de Artes da UFRN

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