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A IDENTIDADE DA MULHER NEGRA...

Pesquisando um pouco na "net" sobre a mulher negra encontrei o artigo abaixo que julguei pertinente ao tema sugerido por "internauta"... (Lm)



17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 286


A Identidade da Mulher Negra na Obra de Rosana Paulino:
Considerações sobre o Retrato e a Formação da Arte Brasileirai
Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte
UNESP/ FAAC – Campus de Bauru/SP

Resumo
Este trabalho aborda a inserção da mulher negra nas artes visuais no Brasil, seja como artista ou como modelo retratada. Para tanto, utiliza-se de um sucinto histórico que propõe uma reflexão sobre a função do retrato no decorrer da história enquanto arte erudita e as suas origens no processo de colonização brasileira. Desta forma, enfatiza a obra de Rosana Paulino como artista contemporânea que faz uma leitura da discriminação a partir da imagem do negro no país, destacando-se a figura da mulher dentro de um contexto autobiográfico.
Palavras-chave: retrato; arte contemporânea brasileira; Rosana Paulino; mulher; mulher negra.

Abstract
This study is about the insertion of black women in the Visuals Arts in Brazil, either as artists or as portraited models. For this reason, it goes back in time and proposes a reflexion about the role of the portrait along History as Erudite Arts and its origins in the Brazilian colonization process.This way, it emphasizes the work of Rosana Paulino as a contemporary artist who reviews discrimination from the image of the black in the country, hilightening the image of the woman in an autobiographic context. Key words: portrait; Brazilian Contemporary Arts; Rosana Paulino; woman; black woman.


Funções do retrato dentro da história da arte

Desde os seus primeiros vestígios, o retrato foi manifesto como instrumento de projeção pessoal, principalmente no que diz respeito a posições de destaque político, sócio-econômico ou religioso. Para satisfazer a necessidade do registro da imagem para a posteridade, o homem desejou e
buscou padrões para ser retratado e assim, imortalizado.
Se na Antigüidade o retrato era utilizado para estabelecer o vínculo do poder político com o divino, a partir da Idade Média representou o suporte para a proliferação da imagem religiosa sob convenções específicas que beneficiassem os ensinamentos doutrinários necessários para a implantação e expansão da Igreja. Nos períodos subseqüentes, o retrato passou a servir a
uma sociedade ávida por projeção social e propagação da imagem, algo evidenciado desde o século XV.

A partir desse século, a arte não se limitou a concepções religiosas ou governamentais, mas passou a ser estendida a todos que poderiam patrocinála. Os artistas montam seus ateliês sustentados por seus mecenas em um período no qual as cidades disputam o status de beleza urbana (GOMBRICH, 1988, p.218), mediante edifícios suntuosos e harmoniosos, como aconteceu
em Florença. Nesse ínterim, o nome de um artista é associado ao termo Academia pela primeira vez, citando-se Leonardo da Vinci no final do século XV (PEVSNER, 2005, p.89) ao consolidar arte erudita dentro de características intrínsecas. Configura-se uma tradição de servir a quem lhe sustenta, em uma dependência que somente começaria a ser quebrada no final do século XIX
com o advento do pensamento impressionista e, posteriormente, modernista.

Dentro desse perfil que lhe garante notoriedade, a arte erudita, produzida pelas academias e centros oficiais de arte, desenvolve-se no centro de um processo de europeização. O termo é utilizado para se referir ao padrão estabelecido dentro dos moldes acadêmicos que vincula as artes visuais a um perfil europeu, no qual os artistas estão delineados.
Se, por um lado, os artistas europeus são homens brancos e relacionados às classes mais favorecidas, por outro o retrato também vem a favorecer essa mesma classe, com exceção dos auto-retratos ou de mudanças que começam a ocorrer na pintura sob influência da Reforma, citando-se a pintura de gênero. Estes aspectos, extremamente vinculados ao Velho Mundo, vêm delinear a cultura representada por ele e, conseqüentemente, a ser implantada nos “novos mundos” que colonizam. No entanto, muitas alterações ocorrem nesse processo, concedendo características próprias à medida que essas terras são descobertas, características essas que também serão expressas nos rostos a serem retratados.
Durante o século XVII, o Período Barroco é instituído em decorrência dos padrões estéticos estabelecidos pela Reforma Protestante. A produção da obra de arte passa a estar submetida a novos objetivos, estabelecidos por interesses concentrados em três forças preponderantes que concedem ao retrato funções diferentes. A Monarquia o utiliza para projetar seu poder de maneira austera e dominante. A Igreja, ao ser dividida, passa a utilizar o retrato para resgatar os fiéis ao catolicismo dentro da Contra-Reforma, em imagens humanizadas dos santos, enquanto a Reforma traz novas temáticas à arte como a pintura de gênero, que beneficia a paisagem, a natureza-morta e o retrato de cunho social. A aristocracia é a terceira força barroca, em continuidade ao que já ocorria no Renascimento, retratada para o sustento dos artistas.

Nesse cenário, a pintura é solidificada na arte acadêmica ao caracterizar o artista e o universo por ele explorado. O estereótipo do artista é o homem branco e seu universo, a elite. A imagem retratada é a do indivíduo branco, com condições financeiras suficientes para custear o artista e, em sua minoria, do sexo feminino. Ou seja, as mulheres retratadas até o século XVIII eram nobres esposas de aristocratas, personalidades santificadas ou divindades pagãs, excetuando-se a pintura de gênero sob influência da Reforma Protestante, como por exemplo, as obras de Vermeer que retratava figuras anônimas até então. Mas, em todos os casos, as mulheres retratadas eram brancas.

No século XIX, o Realismo e o Romantismo passam a explorar o tom sublime e documentário das minorias. Assim, os temas exóticos de povos distantes como nas obras de Delacroix, tomam lugar nas pinturas, bem como os trabalhadores e pessoas comuns, como se pode evidenciar na obra de
Millet.
Com o advento da fotografia como linguagem artística acentua-se o reconhecimento de “novos mundos” e o interesse pelas minorias enquanto “seres exóticos”. Negros, índios e mulheres são retratados como objetos da curiosidade européia, dos observadores atentos e ávidos pelas riquezas e excentricidades presentes em terras distantes.

Devido às descobertas dos novos mundos, o exótico transforma as minorias em temática para os retratos e indivíduos, que antes não teriam lugar de destaque nas obras de arte, em alvos da curiosidade, os retratos tiveram um novo enfoque, deslocado para as minorias. No final do século XIX e início do século XX, as vanguardas modernistas aproximariam a realidade européia dos povos primitivos retratados e obras de artistas como Gauguin, o qual teve interesse especial pelas mulheres taitianas.
A formação do artista dentro da arte brasileira

Seguindo os modelos estabelecidos pelos padrões europeus, a arte brasileira formou-se também branca, masculina e com um alto grau de erudição, algo refletido não só nos artistas como também nos retratos, como salienta o crítico de arte Tadeu Chiarelli em “Arte Internacional Brasileira” (1999), ao mencionar os estereótipos presentes nas artes plásticas já nos tempos do descobrimento das Américas. O autor aponta para esses estereótipos que permitiam acesso a um tipo de educação artística além de aspectos puramente artesanais ao definir a arte européia como uma “atitude mais intelectual do que operativa”, sendo elaborada por determinado sexo, grupo étnico e econômico, algo perpetuado ao longo dos séculos. No entanto, o grande “problema”, ao se transplantar este padrão para a realidade brasileira foi delinear esse grupo específico dentro da sociedade.

Na impossibilidade de se encontrar um grupo branco e de considerável poder aquisitivo, a arte brasileira erudita nasceu sob um caráter divergente do europeu, fazendo com que a herança sofresse algumas adaptações. Para isto, segundo Chiarelli, a arte brasileira foi dividida em dois grupos: um próximo à produção erudita e herdeiro da arte européia e outro decorrente de manifestações e segmentos marginalizados socialmente, com a contribuição de diversas culturas.
O primeiro foi iniciado de maneira sistemática, implantado no Rio de Janeiro pela Academia Imperial de Belas Artes, que instituiu a categoria de artista e a corrente principal de arte do país, exatamente por seguir os padrões formais, ditados pela metrópole e por seus interesses. Servia aos setores oficiais da cultura local.

Como o grupo vinculado à arte erudita só foi instituído no século XIX, o grupo de caráter mais popular, apesar de marginalizado, já estava consolidado no país e tornou-se a base da arte erudita. A atividade artística, manual exercida por escravos ou libertos e por isto também considerada “um assunto de negros”, integrou a principal corrente da arte brasileira. Esta, apesar de pretender-se branca e masculina, absorveu a cultura de outras camadas (uma cultura não-dominante), além de ser constituída por uma significativa participação do sexo feminino.
Dessa forma, o artista brasileiro se formou a partir de dois segmentos estranhos ou marginalizados pelos “filhos de classes abastadas”: imigrantes, que eram vistos como “brasileiros nascidos em outros países” e as filhas das “classes abastadas”, já que os filhos das famílias economicamente dominantes por elas eram enviados para estudar fora do país com o intuito de serem os futuros “doutores”. Com isto houve uma margem para que mestiços e mulheres participassem de maneira significativa da formação artística no país. No que diz respeito aos retratados no Brasil, observa-se nas obras de artistas como Debret, Franz Post ou Albert Eckhout o fascínio pelos povos desconhecidos, tapuias, mamelucos, negros, mulatos, chegando a romantizar as interpretações dos moradores das novas terras. Ao trazerem olhares curiosos de artistas provenientes de toda parte do Velho Mundo, as inúmeras expedições científicas se tornam responsáveis por um retrato do Novo Mundo cheio de excentricidades e descobertas constantes, no qual o inusitado era o centro e o assunto, o desconhecido, o selvagem, enfim, o oposto do mundo civilizado. Desta forma, houve uma alteração na visão retratista européia, inserindo-se características específicas do indivíduo brasileiro.
Com a chegada da Corte Imperial ao Brasil, a arte erudita proveniente das academias centenárias européias passa a ser difundida e assim, como diria o antropólogo Nelson Werneck (1997), a ser transplantada para as novas terras. No entanto, essas já possuíam características arraigadas a uma cultura representativa, resultante de uma série de misturas de povos e raças que aportaram em solos brasileiros. “As novas terras” já possuíam, há centenas de anos, seus moradores primitivos e primeiros colonizadores, assim como ocorreu durante a formação cultural em outros solos, inclusive no europeu.

Assim a arte erudita européia, ao entrar no Brasil, com uma diferença de com uma diferença de centenas de anos, aproximou-se da cultura espontânea, resultando em uma cultura erudita “jovem” e adaptada. Toda tradição européia foi “diluída” em solo brasileiro de maneira a ser “digerida” rapidamente (já que isto ocorreu para suprir as necessidades da corte). Se dentro dos padrões europeus essa mescla pode ter resultado em uma “erudição precária”, “tupiniquim” que absorveu conteúdos da cultura popular, para os padrões brasileiros permitiu o despertar de uma arte questionadora e autêntica se autodeclarou no Modernismo e eclodiu aproximadamente cento e quarenta anos após a implantação da Missão Artística Francesa, “sintonizada” e até “à frente” da pesquisa plástica em nível mundial, citando-se as obras de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Estes, ao tomarem partido dessa mescla dentro de características intrínsecas à arte brasileira, produziram obras que somente vieram a ser descobertas e reconhecidas mundialmente trinta anos após a sua criação, algo que demonstra a riqueza da arte brasileira, comprovando-se, assim, que não há evolução das artes, mas sim uma grande diversidade de culturas. Como a cultura erudita foi implantada no país somente no século XIX, a produção anterior somou a influência indígena pré-cabralina a todas as culturas inseridas pela variedade de povos que conviviam no Brasil. Esses eram, em sua maioria, trabalhadores braçais sem acesso aos bancos acadêmicos, já que as personalidades letradas estavam concentradas nos grandes centros do Velho Mundo. Nas terras distantes, as potências européias renasciam do povo iletrado, desprovido de bens, sujeitos ao trabalho escravo. Assim, a cultura brasileira delineou-se negra, indígena e uma mescla de representantes europeus, reprodutores de uma cultura basicamente espontânea.
A presença da mulher negra na arte brasileira
Ao conceder espaço para as filhas das classes abastadas, a arte brasileira se desenvolveu de maneira diferenciada dos moldes europeus. No que diz respeito à presença feminina nas artes, vale salientar as próprias palavras de Tadeu Chiarelli (1999, p.20): ... a produção realizada por mulheres, desde o início deste século, no Brasil é fundamental para se pensar a própria arte brasileira tanto do ponto de vista de sua estruturação enquanto circuito, quanto daquele referente a certas especificidades poéticas.

A forte presença dessas “filhas das classes abastadas” no eixo principal da arte brasileira muito se deve à situação aberta deste mesmo eixo, tornando-o permeável o suficiente para que parte desse segmento da população – como os imigrantes – constituíssem nele o seu lugar de afirmação individual e social. As brasileiras como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Maria Martins, Lygia Clark foram reconhecidas como artistas, desenvolvendo uma arte inovadora e mais livre dos cânones acadêmicos. Isto ocorreu principalmente por possuírem uma posição privilegiada financeiramente não necessitando da venda de suas obras, algo que também pode ser observado nos artistas nativos e imigrantes que exerciam outras atividades profissionais, dedicando-se à arte de maneira secundária. Com isto foi estabelecida uma relação amadora com a arte, permitindo-lhe uma apropriação de muitas especificidades do universo feminino na arte brasileira.

Dessas experiências, o crítico enfatiza a formação de uma arte moderna e contemporânea distinta da produção internacional em geral (Idem, p.26): pelas características que a cultura local impôs ao circuito artístico, uma parte significativa dessa arte preservou, desde Tarsila, uma relação menos idealizada entre o objeto de arte e o espectador, típica da experiência popular, e trazida para o âmbito da arte erudita local pelo imigrante e pela mulher.
Sob esses aspectos, a arte brasileira dimensionou uma vocação que transcendeu o suporte bidimensional, afirmando-se em sua própria tradição visual e dialogando com a arte internacional. Para Tadeu Chiarelli, essa visualidade brasileira, menos “colonizada”, emerge nas poéticas de alguns novos artistas na produção da década de 1980, ao trabalharem repertórios entre a cultura de massa e a popular, vendo na tradição moderna brasileira “certas atitudes estéticas e artísticas eruditas”. O autor credita a essa geração uma “descolonização” que funda a “arte brasileira internacional”, sendo esta uma de suas principais contribuições. Nessa descolonização, a europeização também é questionada, juntamente com a inserção da globalização.
Se por um aspecto não havia espaço para a artista negra no Brasil, por outro, nas pinturas produzidas durante as expedições científicas, pode-se ver a presença de negras e mulatas escravas como temática constante. Não somente estas, mas também a mestiçagem decorrente do acasalamento com índios ou brancos constituíam focos de interesse para os artistas que registravam o Brasil colônia, conforme pode ser visto nos desenhos e aquarelas de Debret ou nas pinturas de Albert Eckhout, por exemplo.
Com o processo de implantação da arte erudita no Brasil, os primeiros alunos da Academia Imperial de Belas Artes buscavam temáticas regionalistas, sob influência do Romantismo e do Realismo europeus para suas pinturas, resgatando a imagem da mulher negra. Apesar de não ser uma constante, pode ser observada quando se estuda a arte acadêmica brasileira traduzindose a mulher servil, a excentricidade e uma tentativa de abordagem nacional. No decorrer dos séculos XIX ao XX, os pintores negros e mestiços juntamente com os estrangeiros tiveram lugar na produção da arte brasileira, citando-se como exemplo Arthur Timótheo da Costa (IMPRENSA, 1982), colaborando para a formação de uma identidade brasileira, algo que não ocorreu com artistas negras, já que as mesmas não possuíam acesso às academias ou à arte instituída.

Dentro do cenário mundial, o universo artístico, mesmo no início do século XXI ainda é descrito como masculino, branco e elitizado, e a presença feminina considerada minoria, conforme a crítica de arte Uta Grosenick afirma em sua obra Women Artists (2001). No Brasil, esses dados vem sendo alterados, mas no que diz respeito à produção da mulher negra as mudanças ainda são pouco expressivas. Dentro desta manifestação, cita-se não somente a obra de Rosana Paulino enquanto registro como também a presença da raça negra representada pela própria artista. Configura-se assim uma metáfora do que ocorre no universo artístico e social, onde a história negra ainda está sendo escrita, conquistando espaços ao ser analisada e pensada pelos seus representantes. Rosana Paulino está inserida no que a pesquisadora Kátia Canton chama de “Novíssima Arte Brasileira” (2001) em publicação de sua tese de doutorado, ao citar a artista como integrante da chamada “Geração Noventa”.

Ao observar características presentes na recente produção contemporânea, destaca tópicos extremamente relevantes para a compreensão e o estudo da obra de Rosana enquanto manifestação de grupos sociais como o afrobrasileiro. Esses tópicos são descritos como: Noções de herança e referência; A memória física e psíquica: resistência contra a apatia e a “amnésia” gerada pela mídia; O corpo: de simulacros, em sua identidade e sexualidade; Arte política, questões individuais e ambiente urbano: estranhamento diante de si, a violência e a vida nas cidades (processo de individualização); Sensibilidade feminina: dimensão intimista, domesticada.
Em estudos como estes, salienta-se a arte abrindo-se para o pessoal, o relato intimista e assim, vista em obras de caráter autobiográfico, em composições e poéticas derivadas de referências pessoais.

A mulher negra na obra de Rosana Paulino: representação e produção Rosana Paulino, enquanto artista brasileira herda as características das mesclas, estando incorporada ao seu trabalho a arte original erudita brasileira mencionada por Chiarelli. Entretanto, a artista paulistana vai além, ao
denunciar uma minoria resultante de uma combinação ainda mais representativa: uma mulher negra, proveniente de classe menos favorecida. Além de pertencer a essa minoria, Rosana ainda a retrata, concedendo a sua obra uma conotação questionadora, autobiográfica e social, ao abordar suas próprias raízes juntamente às da formação da arte brasileira.
Ao entrar em contato com as obras de Rosana Paulino, entra-se também em contato com a história da artista. Sexualidade, raça e condição social emergem em um tom de denúncia que conduz o espectador à reflexão sobre posicionamentos discriminatórios. Rosana é vista pela crítica de arte e historiadora Annateresa Fabris (1999, p.73), em um artigo denominado “Percorrendo Veredas: Hipóteses sobre a Arte Brasileira Atual”, dentro de uma tendência denominada story art, que teve início nos anos 1970 e que teria por objetivo “estabelecer relações entre acontecimentos e sentimentos, memória e presente a partir de um ‘lugar mental’ particular.” Nela, história pessoal e História se confrontariam em vivências pessoais e familiares. As “relíquias” da artista, em sua crônica pessoal, emprestariam equipamentos tecnológicos atuais para trazer ao público suas condições mais pessoais. Ao mesmo tempo em que esses meios são utilizados, a eles são agregados procedimentos milenares como a costura, gesto arquetipicamente
feminino, em reproduções incessantes que remetem à transmissão da memória familiar.
Iniciada no lar e no convívio com o fazer artesanal, a trajetória profissional de Rosana continuou nos cursos assistidos no Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo e na USP, onde se bacharelou em Gravura. A artista remete sua carreira aos professores que a direcionaram “à trilha certa”, ao estágio que desenvolveu no MAC e à maturidade que já possuía ao fazer o curso. No segundo ano de faculdade já expunha, no terceiro já recebia prêmios e tinha artigos publicados a seu respeito. Atualmente, tem seu trabalho reconhecido internacionalmente, expondo dentro e fora do país.
Sendo de origem humilde, Rosana Paulino tem em sua história, as raízes de seus trabalhos. Aprendeu a costurar com a mãe, empregada doméstica, vendo-a nos afazeres do lar. Questões referentes às suas condições como mulher e como negra sempre estiveram presentes em seus trabalhos, nos quais insere objetos banais e procedimentos concernentes ao mundo da mulher. Desta forma, utiliza-se, dentre outros materiais, linhas, agulhas, tecidos que são transformados em instrumentos de denúncia e técnicas para a execução de retratos. Nas palavras da própria artista (Paulino, 1997, p. 114), Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para a condição no mundo.

Em várias obras, Rosana Paulino utiliza a costura e o bordado como técnica e formas de registro, os quais, segundo a artista, constituem maneiras de trabalhar a memória, comunicar-se. Um dos mitos que mais cita, inclusive, na entrevista que concedeu para a elaboração da tese de doutorado a Joedy Bamonte (Paulino, 2002) é o de Aracne. Associa o trabalho das aranhas, silencioso, anônimo, às impossibilidades de comunicação, a fios que envolvem a mulher, fazendo-a se calar, paralisando-a. No entanto, o fio que surge para executar a ação é o mesmo que denuncia, que é exposto. No bastidor, a mesma atitude silenciosa feminina é a que expressa agressão, é a linha que “fere” a imagem, que cria a obra, que a leva para a parede. Para exemplificar, insere-se a obra no final do texto.

Para a artista, a arte é justificada e deve ser usada para que possa pensar sua condição no mundo, questões da mulher, de sua origem, de sua cor. Para isto se utiliza de chumaços de cabelo “pixaim” (Paulino, 2002), como diz, reproduções de fotos de mulheres negras, objetos referentes ao culto afrobrasileiro, depoimentos de mulheres. A memória, física e psíquica, presentes na sua obra apropriam-se de uma tradição artesanal popular, do universo doméstico, da dimensão intimista e da sensibilidade feminina, assuntos, que para Kátia Canton, estão relacionados à realidade brasileira e internacional mostrada nas artes plásticas neste período de transição entre milênios. Durante entrevista (Idem), Rosana, ao mostrar seus trabalhos e contextualizá-los, menciona sua infância e a ausência de referências que sentia. Sequer suas bonecas eram de sua cor. Hoje, a artista cria sua própria linguagem, recriando códigos que compõem suas próprias referências. Códigos que traduzem não só a sua necessidade de identificação, como a de gerações
inteiras.

Considerações Finais

Ao se estudar a obra de Rosana Paulino, observa-se dados que remetem o espectador a uma história recente. Ocorre um momento para reflexão sobre esse passado e sobre as marcas deixadas pelos registros visuais. As funções da arte estão presentes nessas marcas, delimitando o
quanto foram alteradas ou adaptadas ao tempo no qual foram produzidas. A arte contemporânea acentuou a proximidade entre arte erudita e popular, “traindo” sua natureza elitista ao exibir-se em seu caráter inovador e questionador. Em seu contexto as minorias se apresentam como fatos,
utilizando-se dos meios artísticos para se exporem. Sob o caráter visceral que configura o terceiro milênio são apresentadas enquanto imagens a serem digeridas, metáforas a serem compreendidas.
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Joedy Bamonte é graduada em Educação Artística pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie (1991), Mestre em Comunicação e Poéticas Visuais
pela UNESP (1998) e Doutora em Ciências da Comunicação pela USP - ECA
(2004). É Professora Assistente Doutora em RDIDP da FAAC-UNESP/ Bauru,
ministrando atualmente a disciplina de Desenho.
e-mail: joedy.luciana@itelefonica.com.br ou joedy@faac.unesp.br
i Artigo com base parcial na tese de doutorado da autora (Bamonte, 2004).

Artigo extraído do site:

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